O AUTISMO SUGUNDO O PARADIGMA DA NEURODIVERSIDADE

O blog está voltando hoje depois de longo período de hibernação. Para marcar esta volta, o texto de hoje faz uma introdução ao conceito de Autismo segundo o paradigma da neurodiversidade. Este conceito, escrito por Nick Walker, não se trata de mera opinião sem embasamento840df2011a15a425c943314c6a464788. Nick Walker é um estudioso do autismo, professor de psicologia na California Institute of Integral Studies, fundador e editor da Autonomous Press, uma editora independente dedicada à “deficiência e neurodiversidade e às formas como elas intersectam-se com aspectos da identidade e experiências de vida”. Além de tudo isso, Nick Walker é autista.

Se quiser saber mais sobre como ele pensa, uma entrevista concedida à Steve Silberman (autor do meu atual livro de cabeceira, Neurotribes), já foi publicada aqui no blog.

Este texto foi originalmente publicado no blog de Nick Walker, Neurocosmopolitanism.


O que é o autismo?

Texto escrito por Nick Walker

1o de março de 2014

Quantos websites existem por aí que têm uma página chamada “o que é autismo?” ou “sobre o autismo”? Com que frequência profissionais, acadêmicos e outros, precisam incluir alguns parágrafos com um texto introdutório explicando o que é autismo em um site, manual, apresentação ou artigo acadêmico?

Eu já vi inúmeras versões deste texto obrigatório. E eles são, quase todos, terríveis. Para começo de conversa, quase todos eles — mesmo as versões escritas por pessoas que declaram estar a favor da aceitação do autismo ou apoiarem o paradigma da neurodiversidade — usam a linguagem do paradigma do autismo como doença, que intrinsecamente contribui para a opressão dos Autistas.

Alem disso, a maior parte dessas descrições do autismo — mesmo muitas das descrições escritas por Autistas — propagam informações imprecisas e falsos estereótipos. Alguns são tão ruins que eles fazem referência ao DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais).

Naturalmente, existem também algumas ótimas definições do que é o autismo por aí. Mas a maior parte delas são mais definições pessoais baseadas nas experiências particulares de cada autor do que uma definição introdutória generalizada.

Precisamos de um texto básico introdutório  do que é o autismo que:
1.) seja compatível com evidências recentes;
2.) não se baseie no paradigma do autismo como patologia;
3.) seja conciso, simples e acessível;
4.) seja formal o suficiente para uso profissional e acadêmico.

Como eu não encontrei este texto em lugar algum, acabei escrevendo-o. E aqui está ele.

É permitido fazer cópias do texto abaixo, em parte ou integralmente, sempre que se fizer necessário um texto de definição sobre o autismo. Por favor, mantenham meu nome como autor do texto (claro que uma citação formal é requisito em escritos acadêmicos). Mas, havendo citação, qualquer pessoa pode usar este texto livremente. 

O que é o autismo?

O autismo é uma variação neurológica humana de base genética. O complexo conjunto de características interrelacionadas que distinguem a neurologia autista da não autista não foi ainda completamente entendida, mas evidências recentes indicam que a distinção central é caracterizada por níveis particularmente elevados de conectividade e respostas sinápticas no cérebro autista. Isto faz com que as experiências subjetivas dos indivíduos autistas sejam mais intensas e caóticas do as que dos não autistas: tanto no nível sensório-motor, quanto no cognitivo, a mente autista tende a registrar mais informações e o impacto de cada fração de informação tende a ser mais intenso e menos previsível.

O autismo é um fenômeno do desenvolvimento, o que significa que ele se inicia no útero e tem influência difundida no desenvolvimento, em múltiplos níveis, ao longo da vida.  O autismo produz formas de pensamento, mobilidade, interação e processamento sensorial e cognitivo distintas e atípicas. Uma analogia frequentemente feita é que os autistas têm um “sistema operacional” neurológico diferente dos indivíduos que não são autistas.

De acordo com estimativas recentes, de 1 a 2 por cento da população mundial são autistas.  Apesar de o número de indivíduos diagnosticados ter crescido continuamente nas últimas décadas, evidências sugerem que este crescimento do diagnóstico é resultado do aumento da conscientização dos profissionais e da população em geral e não um aumento na prevalência do autismo.

Apesar de terem a neurologia autista em comum, indivíduos autistas são imensamente diferentes uns dos outros. Alguns indivíduos autistas exibem talentos cognitivos excepcionais. No entanto, no contexto de uma sociedade construída para as necessidades sensoriais, cognitivas, sociais e de desenvolvimento  de indivíduos que não são autistas, os indivíduos autistas são quase sempre deficientes em algum grau — algumas vezes de forma bem óbvia e outras de forma mais sutil.

O campo das interações sociais é um contexto no qual os indivíduos autistas tendem a ser invariavelmente deficientes. As experiências sensoriais de uma criança autista são mais intensas e caóticas do que as de uma criança não autista; desta forma, são requeridas da criança autista mais atenção e energia para realizar a tarefa constante de percorrer e integrar essas experiências sensoriais. Isto significa que a criança autista tem menos atenção e energia disponíveis para concentrar-se nas sutilezas das interações sociais. As dificuldades para satisfazer as espectativas sociais de pessoas não autistas resultam, com frequência, em rejeição, que acaba agravando as dificuldades e impedindo o desenvolvimento social. Por esta razão, o autismo é com frequência interpretado erroneamente como sendo essencialmente um grupo de “déficits na esfera social e da comunicação”, por pessoas sem consciência de que as dificuldades sociais encontradas por indivíduos autistas são meros subprodutos  da natureza intensa e caótica da experiência sensorial e cognitiva do autista.

O autismo continua sendo amplamente considerado um “transtorno”, mas esta perspectiva vem sendo contestada recentemente pelos proponentes do modelo da neurodiversidade, que defende  a ideia do autismo e outras variantes neurocognitivas, como partes do leque natural da biodiversidade humana, assim como as variações em etnia ou orientação sexual (que também têm um histórico de patologização). Por fim, descrever o autismo como transtorno, representa um julgamento de valor, e não um fato científico.

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9 respostas para O AUTISMO SUGUNDO O PARADIGMA DA NEURODIVERSIDADE

  1. Guilherme Boechat disse:

    Parabéns, Alexia! Muitíssimo importante a tradução deste texto, pois ele aborda de uma maneira muito acessível o tema e apresenta de forma muita clara diversos pontos que são frequentemente expostos de forma equivocada. Além de ter como base a experiência pessoal do autor, o que nenhuma pesquisa pode substituir.

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  2. Renata disse:

    Já tinha lido no original e achei a perspectiva sensacional. Sou pesquisadora no campo das humanas e as definições e explicações calcadas nos manuais diagnósticos me deixam um tanto desconfortável – simplesmente não são compatíveis nem com a minha vivência e nem com a minha perspectiva sobre a pessoa. Sentimento de gratidão por teres articulado uma tradução para português de modo a ampliar o alcance dessa perspectiva. 😉

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  3. Pingback: É POSSÍVEL SER UM AUTISTA NATURISTA? MAS CLARO, COMO NÃO? – William JS – o desenhista das ruas

  4. ROSA HELENA PRATES COSTA disse:

    Parabéns Walker pela busca de uma definição sem rótulos, estereótipos ou mesmo termos carregados de estigmas negativos, “espectro”, “transtorno” “invasivo”, são tantos que me perco. Sou mãe de um filho autista , hoje com 28 anos, desde a sua infância,sabia que tinha algo diferente no comportamento, atitude e comunicação, busquei incansavelmente uma explicação junto à área da saúde. Diagnóstico? Alguns que não auxiliaram o seu desenvolvimento: hiperatividade, deficiente mental e outros mais, menos aquele que se confirmado poderia ter me ajudado a fazer uma intervenção precoce. Sintetizando, busquei conhecimento, estudando e observando o meu filho, até que por mim mesma cheguei a conclusão do diagnóstico, tardiamente, não tem problema. Medicação, problemas oriundos da sua sensibilidade sensorial e vamos aprendendo, vivendo um dia por vez.

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  6. Pingback: Texto de Nick Walker “O que é o autismo?”, traduzido por Alexia Klein e com adaptações. – Autismo em Outras Cores

  7. Márcio Messias Belém disse:

    Ufa! Alguém, certa vez, me disse que desconstruir para reconstruir dá mais trabalho que construir. Por isso, o meu “ufa!”, como demonstração de que estou reaprendendo e me redirecionando. Muito obrigado por me permitir entender que a patologização e seus processos estão hiperpresentes na própria linguagem de quem intenciona falar/escrever sobre o autismo. A própria expressão “transtorno”, como enfatizou o nobre autor, está carregada desse viés excludente. Obrigado, sempre!

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