A IMPORTÂNCIA DA REAPROPRIAÇÃO DA PALAVRA “AUTISTA”

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Cynthia Kim

Para começar 2015, mais um texto muito relevante de uma das autoras que já haviam sido publicadas, Cynthia Kim.

Eu havia publicado no site uma explicação sobre a diferença entre as duas formas de se referir a alguém no espectro do autismo, autista ou pessoa com autismo. No texto de hoje, Cynthia Kim fala mais sobre o assunto e nos alerta sobre a importância, para a comunidade autista, de reapropriar-se da palavra autista, restuindo a ela uma conotação positiva e a existência como forma de identificação do grupo aos olhos de toda a população.

O texto original pode ser visto aqui.


A reapropriação da palavra “Autista”

Cynthia Kim

A maioria dos adultos autistas preferem ser chamados de autistas do que de pessoas com autismo, ou pessoas que têm autismo. O consenso geral é que o autismo não é uma entidade separada. Estar “com” alguma coisa, ou “ter” alguma coisa, implica que poderíamos de alguma forma livrarmo-nos daquela coisa e, ainda assim, continuarmos a ser nós mesmos, comparavelmente a alguém que se curou de um mal físico.

Eu sempre fui autista e sempre o serei. Se não fosse autista, eu seria uma pessoa completamente diferente. Minha organização neurológica afeta a forma como eu percebo o mundo e a forma como o mundo me percebe. Eu sou autista. A mim, isto parece muito simples e lógico.

No entanto, isto não é sempre tão simples para todo mundo. Eu noto que muitas pessoas na comunidade relacionada ao autismo (que é diferente da comunidade autista) vêem o uso de “autista” como um rótulo ofensivo ou, no mínimo, desconfortável. O argumento principal é que “o autismo não define” a pessoa a quem eles relutam em chamar de autistas (frequentemente, um membro da família).

A visão do autismo como um atributo negativo está inerente neste argumento. Por que outra razão alguém teria aversão a ser “definido” por uma característica? Alguém diria, “não chame o Tommy de inteligente, porque sua inteligência não o define” ou “não chame a Kate de loira porque sua cor de cabelo não a define”?

Rótulos neutros ou positivos raramente causam reações de oposição. Inteligente. Bonito. Homem. Mulher. Destro. Canhoto. Loiro. Moreno. Poucas pessoas se oporiam caso você se referisse a si ou a outros por esses rótulos. Ninguém lhe dirá para chamar alguém de uma pessoa com beleza ou uma pessoa que tem “loirice”.

Então, por que a controvérsia quanto a autista? Talvez porque o autismo ainda traga muitas conotações negativas. Nós estamos no processo de reapropriação da imagem do autismo e do autista, mas ainda não chegamos lá.

Reapropriação linguística

A reapropriação linguística é a redefinição de uma palavra que vinha sendo usada como um pejorativo. Quando um grupo adota o uso de uma palavra que vinha sendo usada para rebaixá-los, eles diminuem ou subvertem o poder daquela palavra, como uma arma.

Gay e queer são consideradas por muitos como exemplos de palavras que foram reapropriadas com sucesso. A palavra gay, que já foi usada como insulto, tornou-se a forma preferida de referência. A palavra queer ainda está em processo de ser reapropriada, mas está chegando lá. Geek e nerd, que há uma geração eram insultos, são agora formas comuns de auto-descrição.

Eu acho curioso que não haja muita discussão sobre autista como uma palavra a ser reapropriada. Ela certamente se encaixa na definição.

A palavra autista já foi e ainda é usada de forma pejorativa. Poderia-se até mesmo argumentar que ela é hoje uma substituta para outras que fazem referência a déficits intelectuais. Isto é muito autista e você é autista? tornaram-se xingamentos comuns em certos jogos e círculos na internet.

Para ser reapropriada, uma palavra tem de ter sido primeiro usada de forma pejorativa ao grupo que ela descreve. Autista, assim, está pronta para esse processo. E eu ainda argumento que ela não somente precisa ser reapropriada para que possa livrar-se de sua força como forma de xingamento, mas também precisa ser reapropriada por adultos autistas para que possa ser redefinida na imaginação coletiva.

Mesmo antes de terem se generalizado como xingamentos, autista (e autismo) já tinham conotações negativas. Para muitos, a palavra autista invoca a parte negativa, a sentença e a ruína associados com o estereótipo do TEA*, e muito pouco além disto. Reapropriando-nos do termo autista, usando-o como um símbolo de identidade e orgulho, podemos ampliar a percepção da população quanto ao que significa ser autista.

* TEA: transtorno do espectro autista.

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