AS ARMADILHAS DE “SE PASSAR” OU NÃO POR NEUROTÍPICO

Texto publicado em 4 de fevereiro de 2016 no site Think Inclusive

Kit Mead

tradução: Ana Gauz

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Nunca aprendi a me passar por NT — pelo menos não perfeitamente. Às vezes pareço alguém que você poderia encontrar na rua ou no mercado, sem aparentar ser diferente do ponto de vista neurológico. Mas nunca saio de casa sem meus fones de ouvido para me proteger das agressões sensoriais do mundo exterior. Em público, costumo parecer angustiada e apavorada, abanando as mãos de vez em quando. Às vezes, uns barulhos escapam de mim. Minha marcha rígida e as palavras murmuradas no caixa das lojas me entregam, se ainda não tiverem percebido. Sou autista, com alguns diagnósticos concomitantes como ansiedade. Com isso, o mundo às vezes é muito brilhante, muito barulhento, muito social. Outras vezes, sou infantil e levada, correndo e soltando uns ganidos deselegantes. Geralmente isso acontece quando estou à vontade.

Eu ainda consigo “passar” melhor do que muitas pessoas. Pode até ser que você não perceba que eu sou autista, no fim das contas.

Tanto “passar” quanto “não passar” tem suas armadilhas. Apesar do treino em competências sociais, nunca aprendi a interpretar conversas para que não fiquem um pouquinho estranhas a menos que as pessoas estejam acostumadas comigo. Não consigo entender como acompanhar as pausas nas conversas e os momentos em que devo falar, além do ritmo. Para outras pessoas, o treinamento em competências sociais é mais “eficaz”, dependendo do objetivo. Elas “passam”, quer tenham treinado com profissionais experientes ou com seus pais.

“Passar” significa que você nos considera um pouco humanos:

“Como na música, aprendi minha parte na vida. Olho nos seus olhos e sorrio. Aprendi a me deslocar pelo mundo sem te incomodar. Eu modulo, ajusto, vejo se você está constrangido, avalio a mim mesma em relação a parâmetros memorizados, a cada minuto do meu dia, para que você passe por mim na calçada sem perceber minha deficiência.

Você me valoriza porque agora sou útil de algumas formas. Você presume que serei mais útil ainda quando terminar meus estudos. Eu frequento os seus círculos sem qualquer ilusão de fazer parte deles.”–Larkin Taylor-Parker [fonte]

No mesmo texto, a autora observa que é preciso “mais prática para imitar expressões faciais do que para tocar semicolcheias num instrumento de sopro de dezoito quilos. É possível aprender a tocar tuba sozinho.” Muitas vezes, aprender a “passar” é algo imposto: você nos enfia numa caixa e nos molda para nos encaixarmos nela. Aí você elogia por parecermos quase humanos. Eu mesma não sofro o esgotamento (burnout) e a fadiga associados a “passar”. Isso porque eu não me esforço muito.

Mas não “passar” também tem seus problemas. Minha deficiência não é tão visualmente perceptível quanto a de outros colegas. As consequências para mim são, geralmente, apenas olhares e cochichos de desconhecidos. Em uma situação extrema, tive um shutdown no campus da universidade e a polícia foi chamada – uma medida desnecessária. Neste meu incidente, a situação não ficou pior. Mas esse não é o caso para muitos colegas autistas, cujas “infrações” – geralmente nada além de serem negros e visivelmente deficientes – resultaram no uso de força policial excessiva e/ou detenção. Muitas vezes meus amigos não são considerados merecedores de dignidade, respeito, direitos humanos, educação e direito à escolha de onde viver. E esta lista não está completa.

Às vezes, mas nem sempre, você me considera humana. Vivo no meu próprio apartamento e estou até adotando um gato. Mas vou precisar de alguém que venha uma vez por mês para me ajudar com a limpeza a talvez me ensinar a lavar a louça. Terminei a faculdade, mas o preço foi alto. E não só pelo dinheiro. Fui expulsa do dormitório da faculdade no primeiro ano. Tive dificuldade para me formar enquanto meus amigos se formavam com honras, o que costumava me causar um sentimento de inferioridade e de não ser tão merecedora dos estudos e da faculdade que frequentava. Tive burnout em alguns períodos, quando funcionava no “automático”. Minha saúde mental declinava com frequência. Hoje em dia, trabalho quarenta horas por semana em uma ONG que luta para proteger a humanidade dos autistas. Parte do meu sucesso deve-se a ter encontrado um trabalho que me permite “não passar” desde que eu faça o que tenho que fazer. Tenho colegas de trabalho que se dispõem a me tirar da cadeira quando esqueço de como me movimentar.

Posso ter um shutdown, em público, com jeito de emergência médica e que me deixe impossibilitada de falar e comunicar minhas necessidades. Graças à disfunção executiva, recentemente perdi meu celular, mas vou instalar o aplicativo Emergency Chat no telefone novo que vai chegar pelo correio.

“Passar” ou “não passar” parece ser o que define quão humanamente somos tratados pela sociedade. Quando “passamos”, somos vistos como humanos o suficiente para orbitar à margem dos seus círculos. Você nos permite agir assim. Você espera gratidão. Quando só “passamos” algumas vezes, não frequentamos os seus círculos, mas às vezes nos permitem aparecer e parecer humanos. Podemos acabar integrados às escolas, ou talvez não. Isso é incerto e depende da situação, e a decisão está sempre nas suas mãos. Quando não “passamos” uma vez sequer, a sociedade nos relega ao porão em programas segregados nas escolas e em casas comunitárias. Você chora a perda de alguém a quem poderia ensinar de forma apropriada. Você perde qualquer sombra de respeito por eles.

E é por isso que estou envolvida com a neurodiversidade… porque nossa humanidade não está condicionada às competências sociais. Não está condicionada à fala. Não está condicionada a “passar”. Nós somos humanos. Enxergue-nos como tais e pare de inventar joguinhos sociais para nos manter na linha.

Foto: Doctor Popular/Flickr


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Kit Mead

Kit Mead, nascidx em Atlanta, estado da Geórgia, é ativista pelos direitos dos deficientes e hoje em dia reside em Washington, DC, atuando na Coordenadoria de Auxílio Técnico para a Autistic Self Advocacy Network – ASAN. Além do seu trabalho com a ASAN, Kit teve textos publicados em QDA: A Queer Disability Anthology e tem um blog de ativismo Quando não está trabalhando pelos direitos dos autistas, Kit gosta de ficar na companhia de seu gato e de escrever poesia.

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Ana Gauz nasceu no Rio de Janeiro e mudou-se para Nova Jersey, Estados Unidos em 2009. É formada em Direito pela UFRJ e hoje é tradutora Inglês-Português, tendo se especializado em tradução jurídica.

Ana conheceu Alexia por intermédio de amigas tradutoras e, ao tomar conhecimento do website Autismo em Tradução, encantou-se pela iniciativa.

 

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