O QUE É “NORMAL”?

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É fácil deixar-se seduzir pela ideia de que ser normal resolveria tudo, que faria a vida das pessoas à minha volta mais fácil. Mas, obviamente, ela não seria mais fácil. Teríamos outros problemas, porque assim é a vida.

Cynthia Kim

Cynthia Kim

No desejo de sermos bem aceitos, todos nós já desejamos ter um cabelo diferente, sermos mais gordos ou mais magros, mais extrovertidos ou mais quietos, mais altos ou mais baixos. É sobre o desejo da aceitação pelos outros que Cynthia Kim fala aqui. Esse desejo que não é difícil de entender para a maioria das pessoas, dentro ou fora do espectro do autismo.

Cynthia recebeu seu diagnóstico de síndrome de Asperger quando tinha 43 anos e, de lá para cá, publicou nos Estados Unidos dois livros sobre o tema, além de ter vários artigos em diversas revistas.

Eu estou super feliz por ter traduzido um texto da Cynthia Kim e tenho a impressão que muitos outros ainda vão aparecer por aqui.

O texto traduzido foi publicado originalmente em seu ótimo blog, Musings of an Aspie“.


A sedutora ilusão da normalidade

Cynthia Kim

Noventa e oito por cento do tempo eu me sinto bem com o fato de ser autista. Eu ia dizer que “não me importo com o autismo”, mas não quero usar uma linguagem morna. Eu realmente me sinto bem comigo mesma na maior parte do tempo.

Mas existem os outros dois por cento. Aqueles difíceis e feios dois por cento quando eu gostaria de ser normal, apesar de que eu não devesse estar falando isto.

Quando eu tinha quatro ou cinco anos eu queria ser um menino. Os meninos podiam brincar de luta, praticar todos os esportes  e andar sem camisa no verão.

Eu tentei andar sem camisa. Isso me trouxe problemas, embora eu não achasse que houvesse diferença alguma entre eu e os outros meninos sem camisa do bairro. Mais tarde eu comecei a andar sempre por onde iam os meninos que jogavam bola e, de vez em quando, os garotos mais velhos me deixavam jogar. Eu aprendi a lançar uma bola em espiral e a apanhar os arremessos longos, não importando o quanto minhas mãos geladas doeriam mais tarde. Em certa época, eu aprendi a brigar.

O desejo de ser um menino foi sumindo.

No terceiro ano eu queria que meus cabelos anelados fossem lisos como os da Marsha Brady. Todas as meninas e meninos mais velhos que eu admirava — mais velhos significa quinta série — tinham cabelos lisos. De alguma forma, parecia que os cabelos lisos, como num passe de mágica, me fariam ser mais aceita.

Alguns anos mais tarde, o cabelo da Farra Fawcett se tornou a sensação do momento. Se eu passasse tempo suficiente com o secador e escova de minha mãe, meu penteado ficava perfeito. Ele não me fez ser mais bem aceita, mas me curou da ilusão de que o cabelo da moda fosse a chave para a minha felicidade eterna.

Eu desejei outras coisas ao longo dos anos. Ser mais alta: mais opções de roupas. Ser mais coordenada:  pois eu não era escolhida para os times no ensino médio. Ser mais feminina: não sei exatamente por que.

À medida que fui ficando mais velha, os desejos foram ficando mais amorfos.

Agora eu me pego tentando identificar onde esse desejo de ser normal se enquadra. Seria ele como o de desejar o cabelo da Marsha Brady — a mudança ilusória que me faria magicamente aceita? Ou seria como o desejo de ser menino para poder brincar sem camisa no verão?

Surpreendentemente, eu acho que seria mais a segunda opção — um desejo mais prático. Veja bem, os momentos em que eu mais desejo ser normal são aqueles em que eu vejo as pessoas à minha volta tendo dificuldades para lidar com — por falta de um termo melhor — os efeitos colaterais do meu autismo.

Eu não vivo em um vácuo. Eu digo e faço coisas. Pessoas à minha volta são afetadas por minhas ações. Mesmo que elas saibam que eu tenho dificuldades com certas coisas — logicamente elas sabem disso. Isso não evita que elas sejam afetadas por minhas palavras ou ações ou  pela minha falta de palavras ou ações.

É aí que o desejo de ser normal vem devagarinho e me pega de jeito.

Há uma razão para eu estar usando a palavra “normal” e não “neurotípico”. “Normal” é uma ilusão e eu sei que nesses momentos é essa ilusão o que eu desejo. Eu não desejo uma organização neurológica diferente, mas uma versão fantasiosa da vida.

É fácil deixar-se seduzir pela ideia de que ser normal resolveria tudo, que faria a vida das pessoas à minha volta mais fácil. Mas, obviamente, ela não seria mais fácil. Teríamos outros problemas, porque assim é a vida.

Mas, ainda assim, o desejo está lá. Ele nasce das frustrações e inseguranças, de uma sensação de nunca ser exatamente boa o suficiente, certa o suficiente, ou simplesmente suficiente.

Talvez ele seja uma questão de auto-estima. A minha nunca foi lá muito boa. Eu oscilo entre muita auto-confiança e muito pouca auto-confiança, sem nunca conseguir encontrar o doce ponto de equilíbrio. Há realmente alguém que saiba onde fica esse ponto? Não tenho certeza.

Nem mesmo sei se isso tem importância. Tudo vai passar. As coisas sempre passam.

Chega um ponto em que eu vejo a ilusão pelo que ela realmente é e o desejo vai indo embora.

Ele sempre vai.

Esse post foi publicado em Aspie, Cynthia Kim e marcado , , . Guardar link permanente.

3 respostas para O QUE É “NORMAL”?

  1. TranslationCraft disse:

    Muito bom o artigo — e muito bom a tradução ! Obrigada à autora e à tradutora !

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  2. Pingback: A IMPORTÂNCIA DA REAPROPRIAÇÃO DA PALAVRA “AUTISTA” | O autismo em tradução

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