JUST STIMMING

STIM ou STIMMING é a palavra que dá nome aos movimentos repetitivos e auto-

Julia Bascom

Julia Bascom

estimulatórios que todos os autistas apresentam. São mãos que abanam, o corpo que balança para frente e para trás, sons ou palavras repetidas à exaustão, como um mantra, e muitos outros comportamentos que poderiam entrar na categoria STIMMING. Algumas das terapias usadas, principalmente as mais ultrapassadas, vêm estes comportamentos como algo que deve ser modificado ou eliminado. Acontece que stimming tem algumas funções importantes para os autistas. Esses movimentos os ajudam a auto-regular seu corpo e suas emoções. O stim pode também ser vistos como uma forma de expressão, já que em suas diferentes formas eles podem comunicar alegria, prazer, tédio, insatisfação, frustração e muito mais.
Just Stiming é o nome do blog da autora de hoje. Julia Bascom foi também fundadora de um projeto chamado “Loud Hands” (mãos barulhentas ou mãos que falam) que virou uma antologia de textos escritos de autistas para autistas e está à venda aqui.

Atualmente, Julia é diretora de programas da ASAN, um órgão de defesa dos direitos dos autistas totalmente criado e mantido por pessoas autistas.

Eu ia esperar até segunda para postar este texto, mas como hoje é aniversário de Julia Bascom, eu decidi adiantar as coisas. O texto original de hoje está aqui.


A verdade é que

Julia Bascom

Nota da autora: Ontem aconteceu na blogosfera o flashblog “Autism Positivity Day” (dia da positividade autista), que começou quando um autor notou que alguém havia encontrado seu blog por meio da busca “eu não queria ter Asperger’s”. Por causa de um problema, eu não pude participar, mas hoje é dia de postar contra o capacitismo e eu ainda tenho algo a dizer.

“Às vezes de manhã eu fico paralisada e não consigo me mover
Acordada, não posso abrir os olhos
E o peso pressionando meus pulmões
Eu sei que não posso respirar
Eu fico na esperança de que alguém me salve desta vez”

Querido “eu não queria ter Asperger’s”,

Eu quero que você saiba que eu entendo.

Essa é a primeira coisa. Nada vai dar certo se não formos sinceros uns com os outros, então, deixe-me ser sincera. Eu já pensei muito sobre a tal cura mítica e houveram dias, muitos dias, quando eu não queria nem ter de pensar — quando eu sabia que, se eu tivesse uma chance, optaria pela cura num piscar de olhos.

Eu preciso que você saiba que eu entendo.

Sim. Eu entendo. Eu quero as coisas que uma cura poderia me dar. Eu quero ter o papel principal na minha própria história e partes na de outras pessoas. Eu quer ser capaz de fazer as mesmas coisas que todo mundo faz, da mesma forma, sem nenhum esforço a mais. Eu não quero me sentir como uma aberração. Eu quero sentir-me segura. Eu quero ser alguém que meus pais possam amar. Eu quero saber que tenho um futuro e eu não quero ter que desbravar essa trilha toda sozinha. Eu quero ter valor. Eu não quero que outras pessoas pensem que têm direito sobre mim e sobre meu espaço e se têm, eu quero que isso pare de me incomodar. Eu quero que minhas palavras e experiências façam sentido para os outros e quero que suas palavras e experiências façam sentido para mim. Eu quero não ter de me esforçar tanto. Eu quero ter um diploma universitário, um emprego e uma casa própria e quero ser capaz de viver onde quer que eu queira. Eu quero poder ser vista como uma pessoa. Eu não quero ter um mês do ano dedicado a lembrar a todos do quanto eu sou defeituosa. Eu quero ser capaz de acreditar que o problema não sou eu, são eles. Eu quero acordar sem estar amedrontada ou já cansada.

Eu quero muitas coisas.

Não é uma coisa ruim, querer coisas.

Olhe só: você vê agora que eu realmente entendo? Espero que sim. Eu recebo algumas visitas suas, ou de alguém que faz a mesma busca toda semana e eu quero que você saiba que não está sozinho e nem errado.

Tudo bem. Fui sincera com você. Agora quero que você seja honesto comigo. Você consegue olhar para a lista de coisas que eu quero e me dizer se vê um padrão?

Eu posso esperar.

Enquanto espero, eu devo também lhe dizer sobre as coisas que eu gostaria de deixar de ser. Além de não ser mais autista, eu também gostaria de ser curada de:

– ser lésbica
– ser mulher
– ser tão obscenamente alta

De verdade. Eu gostaria de poder me casar com alguém que eu amasse. Eu gostaria de poder andar numa rua escura sem temer por minha segurança. Eu gostaria de me sentar em uma cadeira feita para alguém da minha  altura. E nenhuma dessas coisas ainda são possíveis, então eu acho que posso lutar para que essas coisas mudem ou tentar mudar a mim mesma.

Ok. Você encontrou o padrão? Tudo bem se não encontrou. Eu mesma levei muito tempo para entendê-lo. É bem sutil.

Todas essas coisas que quero?

Elas não têm nada a ver com ser autista.

De verdade. Nem uma delas sequer.

Eu deveria ter o papel principal em minha história. Se não tenho é porque outros não estão me tratando como uma pessoa. Isso não é minha culpa. Estou certa de que quem está errado é aquele que pensa que ter uma deficiência significa que você não é uma pessoa.

Por que eu quero fazer as mesmas coisas que todo mundo? Por que isso é importante para mim? Se eu vivesse em um mundo que reconhecesse que há várias formas de se fazer algo e que as coisas que eu faço e as formas como eu as faço são válidas e importantes, eu me importaria com essas coisas?

Será que eu veria isto como uma questão?

Se quando eu era criança eu soubesse da existência de adultos autistas, eu agora saberia que tenho um futuro e que ele é claro e próximo e real  E adivinhe — eles existem, eles sempre existiram por milhares de anos e no geral estão se saindo tão bem quanto as outras pessoas.

Eu quero ter valor. Veja, se eu tivesse um amigo que se sente sem valor, eu tenho certeza de que não diria a ele, “você tem razão, você é patético. Por favor, mude tudo em você”. Tenho certeza de que eu diria a esse amigo que as pessoas que o estão fazendo sentir sem valor são imbecis abusivos, que ele é bom em várias coisas, que ele é uma pessoa fantástica que eu tenho a sorte de conhecer e que o valor humano não é uma coisa tangível que podemos ganhar ou perder. E se eu posso dizer tudo isso para um amigo e realmente acreditar no que digo… por que não posso dizer isso para mim mesma? Eu não sou especial. As regras para mim são as mesmas que para todo o resto. E isso quer dizer que eu tenho valor, quer eu acredite ou não.

Eu poderia continuar citando a lista. E sei que eu toco algumas pessoas que tiram um tempo para me ouvir da forma como eu preciso ser ouvida, e eles fazem sentido para mim. É assim que relacionamentos funcionam e existem várias formas diferentes de se comunicar. Eu posso ter um emprego, uma situação de vida na qual eu tenha o controle e toda a educação que quero, com o apoio apropriado, assim como todo mundo. Eu não tenho culpa se o apoio que eu necessito é diferente do que a maioria necessita e isto não é motivo ou desculpa para me destratarem ou discriminarem. Etc, etc, etc.

No fim das contas, o que há são duas coisas que quero quando digo que eu queria não ser autista  ou que queria uma cura. Eu quero não me sentir como uma aberração e eu quero me sentir segura. Essas são coisas difíceis de sentir e de admitir. Mas porque eu estou sendo sincera, eu tenho de perguntar algo ainda mais assustador.

E se a cura não consertasse essas coisas?

Porque no fim, se eu fosse curada, eu estaria me rendendo. Ao invés de estar lutando pelo meu direito de ser tratada e valorizada como um ser humano apesar de minha deficiência, eu estaria desistindo, me rendendo e me deixando ser transformada em algo mais fácil, alguém mais aceitável, alguém conveniente. E eu quero ser clara — não há nada errado em querer que as coisas sejam mais fáceis ou em querer sentir-se seguro ou aceito ou apenas parar de lutar. Isso apenas quer dizer que você teve de ser muito, mas muito mais forte do que os outros por muito, mas muito tempo.

Mas se para sentir-me segura eu tenho de deixar de ser eu mesma.

Então eu não estou segura.

Enquanto ser deficiente significar estar em perigo, então ninguém está seguro. Não mesmo. De acordo com a ADA (Lei das pessoas com deficiência dos Estados Unidos), a deficiência é uma parte natural da experiência humana. A maioria das pessoas vivenciam um tipo de deficiência, por algum período de tempo, em algum ponto da vida. Enquanto nós, como sociedade, continuarmos a permitir exceções a regras como “todos somos pessoas” e “trate os outros como gostaria de ser tratado”, ninguém estará seguro. Segurança que se consegue por estar dentro de alguma margem aceitável, não é segurança.

Eu prometi ser sincera. Uma parte de ser sincera é olhar para o que minhas palavras realmente significam, o que está para além delas, quais ideias controlam o que eu digo. E por trás de cada “eu queria que eu não fosse autista” há um “eu queria que o mundo tivesse um lugar para mim” ou “se eu culpo a mim, eu sinto que estou em controle”.

Mas não tem problema eu me sentir dessa forma. Bem, é um problema que alguém tenha de se sentir assim, mas eu não sou má ou errada por sentir-me assim. E nem você. Mas sentimentos não são o mesmo que a realidade e, no fim, se não fôssemos mais autistas, ainda haveria gente ferindo outros apenas porque podem e apenas porque ninguém nunca lhes disse para parar e continuaríamos sabendo que basta um pequeno desvio para voltarmos a ser vulneráveis. Uma cura nunca vai  mudar isso.

O que mudará isso é algo muito mais difícil do que uma pílula mágica. O que mudará isso é gente o suficiente dizendo que basta e trabalhando duro pra fazer de nosso mundo um lugar onde todos sejam bem-vindos, todo tipo comunicação tenha crédito e todos sejam seguros e valorizados. E isso ainda vai levar tempo e haverão dias em que você, em que eu, desejaremos não sermos autistas, porque as vezes dói.

Mas isso vai mudar. Já está mudando. E você não deveria e não tem de mudar a si. Você é maravilhoso, suficiente e digno de amor do jeito que é e eu realmente espero que você continue aqui para que um dia o resto do mundo também saiba disso.

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Uma resposta para JUST STIMMING

  1. Amanda Raylla da Silva Melo disse:

    Que texto Incrível!

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