Originalmente publicado em 5 de agosto de 2013 por m.kelter
Tradução Ana Gauz
Houve uma época em que eu era muito focado em gizes de cera. Eu tinha quatro anos de idade, talvez cinco.
Lembro-me de que gostava de tirar o papel que cobria cada giz de cera. Começava de cima e continuava, com cuidado, para baixo e para os lados. Fazia com calma, tentando arrancar todo o papel em uma só tira contínua.
A cada nova caixa presenteada por meus pais, eu abria…tirava os gizes um a um…rasgava o papel de cada um…e jogava a pilha de papéis na privada e dava descarga.
Uma vez libertos, os gizes de cera tornavam-se agradáveis ao toque. Pareciam meio que feitos de plástico…duros e macios ao mesmo tempo…era bom. Os papéis, por outro lado, eram muito ásperos, tinham muita textura. A aspereza do papel era algo que eu simplesmente não conseguia aceitar. Consequentemente, era preciso rasgar o papel e dar descarga.
O cheiro do giz de cera era também muito intenso, pelo menos em algumas das cores. Os gizes azuis eu poderia cheirar o dia todo. Tinham um tipo de cheiro leve, neutro que eu adorava. Os vermelhos eram sedutores, de uma forma intensa e magnética. Os gizes verdes, por outro lado… esses tinham que sumir. Tinham um cheiro acre, horrível. Assim que abria uma caixa nova, eu tinha que tirar o giz de cera verde e escondê-lo. Às vezes, eu o escondia debaixo de uma almofada do sofá ou jogava no lixo. Pelo menos em uma das vezes, eu abri a porta da frente e arremessei o giz de cera o mais longe que consegui. E isso confundia meus pais.
Eu não tinha reação às outras cores ou não me lembro mais de como reagia. Azul. Vermelho. Verde. Essas se sobressaíam.
Logo descobri que minha mãe e meu pai detestavam a rasgação dos papéis. Eles observavam tudo, perplexos. Perguntavam: “Por que você está rasgando os papéis dos seus gizes novos?”
Eu achava estranha aquela pergunta. Era óbvio que eu estava melhorando os gizes de cera…mas eles consideravam destrutivos os meus esforços. Fiz o melhor que pude para educá-los. Eu respondia com palavras. Depois palestras. Depois dissertações. Eles respondiam com repreensões. Depois acenos de cabeça educados. Depois silêncio.
Minhas explicações caíam por terra, o que me confundia profundamente. As palavras sempre me pareceram tão absolutamente suficientes. Eu confiava nelas. Comecei a ler cedo, precocemente. E, mesmo assim, algo estava acontecendo…as palavras não estavam sendo capazes de me aproximar dos meus pais em um assunto que, na minha forma de pensar, não poderia ser mais óbvio.
Uma confusão começou a se instalar no meu coração. O que eu não tinha como saber naquela época: outras pessoas não estavam tendo as mesmas experiências sensoriais. Os cheiros e os papéis não incomodavam meus pais. Não incomodavam meus professores e os outros alunos. Não importava que eu pudesse explicar (sem hesitação) o que eu estava fazendo. Eu não conseguia explicar o porquê. Termos como “espectro autista”, “síndrome de Asperger”…viriam mais tarde. Muito, muito mais tarde.
Não importa a idade que eu tinha…quando os gizes de cera eram uma questão…essa é minha primeira memória de choque entre linguagem e realidade. Foi então que uma tensão sutil começou a sussurrar no meu ouvido: “Alguma coisa aqui está diferente. Alguma coisa está acontecendo.”
Nada disso me impediu de tirar os papéis dos gizes de cera…de cheirar os azuis, de esconder os verdes. Essas sensações fortes…eu me embebia delas. Elas preenchiam minha mente com cores, cheiros, textura.
O autor
M. Kelter, “escritor, felino caseiro, cosmonauta social”. Ele foi diagnosticado como autista por volta dos 30 anos de idade, quando procurou ajuda para tratar a depressão. Com maior entendimento de sua personalidade e do que causava seu senso de inadequação, começou a escrever sobre a experiência no blog The Invisible Strings.
A tradutora
Ana Gauz nasceu no Rio de Janeiro e mudou-se para Nova Jersey, Estados Unidos em 2009. É formada em Direito pela UFRJ e hoje é tradutora Inglês-Português, tendo se especializado em tradução jurídica.
Ana conheceu Alexia por intermédio de amigas tradutoras e, ao tomar conhecimento do website Autismo em Tradução, encantou-se pela iniciativa.
Gostou do que leu? Não perca nenhuma postagem, siga a página do Autismo em tradução no Facebook!